domingo, 21 de fevereiro de 2010

PRONUNCIAMENTO DO PE. LESSI, SJ

Pronunciamento feito pelo Padre Mário Lessi SJ
aos membros do XVII CG
na apresentação do estudo sobre o Carisma
- janeiro de 2003 -

(Texto transcrito de gravação em fita K7)

Parece-me importante indicar, neste trabalho, a visão elaborada, em parte por pessoas que vivem a vida das Filhas de Maria, e em parte também por mim, com uma visão desde fora. Objetivamente eu me perguntei: o que poderia ser indicado como essencial na visão de Gianelli? Quando alguém entra num Instituto religioso, encontra uma vida vivida numa tradição viva, que transmitiu a fidelidade ao Carisma com aplicações feitas também em tempos precedentes e, talvez, poderia entender o modo de vida atual a partir daquele inicial. Refletindo sobre o que era inicial penso ter alcançado uma convicção em torno de algumas características próprias do Carisma de vocês. A característica fundamental me parece ser o aspecto de novidade presente na mentalidade do Fundador.

Quando Gianelli fala de um novo Conservatório ou Retiro, procura dar um passo à frente nesta benéfica Instituição, pois existiam muitas versões, seja de Retiros, seja de Conservatórios. Ele tinha tido experiência no Conservatório de São José, de Gênova e, quando usa a expressão novo Conservatório, provavelmente quer dizer: “aqui existe alguma algo novo e há qualquer coisa nova a ser feita; não quero repetir o que já existe”. Por isso, entre outras coisas, ele não adota nem mesmo as mesmas Constituições ou Regulamentos que havia elaborado para o Conservatório de Gênova.

Gianelli quer alguma algo novo na Igreja. Acrescenta ainda o título: Retiro. E, entre os quinze Artigos haverá um que se chamará: Amor ao Retiro. Este “amor ao retiro” encontra-se, tanto nos doze Artigos como nos quinze, juntamente com o trabalho e o silêncio. Os Artigos dez e onze ele os cita, o do silêncio ele acrescenta; o do trabalho tinha como título “Trabalho constante”, depois o transforma em “Amor ao trabalho” e coloca exatamente três características: amor ao trabalho, amor ao retiro e amor ao silêncio.

A idéia de “Retiro” era muito desenvolvida naquele tempo, sobretudo na região da Ligúria, onde São Bernardo de Porto Maurício tinha instituído “Retiros”.

Os “Retiros” eram lugares de oração mais intensa e de maior vida ascética, orientados para uma renovação interior, aonde alguns frades, especialmente franciscanos, iam, às vezes, por um ano, outras vezes por um período mais breve. Os retiros eram, naquela época, o que hoje podemos chamar de ano sabático, mas dedicado precisamente a uma vida de oração e de penitência mais intensas. Era um período de renovação,correspondendo ao que é hoje formação permanente, com períodos determinados.

Este é o primeiro aspecto de renovação. O Fundador quer um Conservatório que seja, ao mesmo tempo, Retiro. Mas, quando Madre Catarina obtém poder estender a outros lugares o serviço das Filhas de Maria, o Fundador tem uma nova iluminação por parte do Senhor: “Por que em alguns lugares não se podia ter as Irmãs?”.

Existiam então as Filhas de Caridade, fundadas por São Vicente de Paulo, do qual Gianelli tomou inspiração para alguns regulamentos das Irmãs. Havia também as Irmãs de Caridade fundadas por Madalena de Canossa, mas o Fundador pergunta-se: “Quando existe esta vontade de ir a outros lugares, nos colocamos na mesma linha das outras ou nos colocamos numa linha diferente?” E o Senhor o inspira: “Iremos onde outras não vão”.

Para poder ir onde outras não vão, se a experiência demonstra que em alguns lugares não se pode ter Irmãs de caridade porque as exigências exteriores ou as possibilidades de algumas instituições não ofereciam muitos meios para poder alojar e pagar o necessário para as próprias exigências de vida, Gianelli insiste sobre estes elementos que podem favorecer uma maior agilidade nas Irmãs: Ir onde outras não vão, em pequenos lugares, em lugares pobres. Mas, para isso, se faz mister haver pessoas que experimentam a pobreza seriamente, de modo a poder viver como pobres em meio aos pobres, com humildade, como pessoas que não têm direitos, desde que possam servir à caridade de Cristo.
O Fundador se abre a todas as formas de serviço, contanto que, no serviço, as Irmãs possam ir com este espírito de liberdade. Por isso, acrescentará nos Artigos o da Simplicidade e Prudência evangélica e o do Desprendimento de tudo. Não que estas idéias já não estivessem presentes nos Doze Artigos, mas os articula melhor, de modo que tudo seja mais orgânico; assim, os Quinze Artigos são o fruto final daquilo que ele afirma no Proêmio: que as Filhas de Maria, por ele pensadas, não podem contentar-se com regulamentos normais, ordinários, habitualmente observados em outros Retiros desta natureza. E estes Regulamentos são, sobretudo, de ordem espiritual.

Ele apresenta um sumário destes pontos de vida espiritual, necessários para pessoas que tenham boa vontade de consagrar-se ao bem do próximo: a) que sejam livres, como dirá no discurso da colocação da pedra fundamental do Conservatório de Chiávari; b) mártires de caridade: pessoas esquecidas do próprio interesse e da própria comodidade, alegrando-se em fazer-se tudo para todos, no exemplo do Divino Mestre; c) pessoas que se alegram em se sacrificar totalmente pela salvação e o bem dos outros. Esta expressão: “pela salvação e o bem dos outros” deve ser explicada também aos italianos. É uma expressão que se encontra no segundo canto da Divina Comédia, quando Dante deve se salvar do perigo, o perigo da perdição eterna. A Filha de Maria deve sacrificar-se inteiramente pela salvação dos outros através daquela caridade, na qual, precisamente, foram reunidas todas as Filhas de Maria: a Caridade Evangélica que é a alma do Instituto. Caridade Evangélica que compreende dois elementos: santificar-se, ajudando aos seus próximos. Santificarem-se, não como aquelas que viviam nos Conservatórios e Retiros normais, pensando somente na própria santificação, mas fazendo, cooperando, como diz Gianelli em um dos textos do Proêmio, devem santificar-se fazendo sempre o bem em favor dos outros. Santificar-se fazendo o bem.

Não tenho nenhuma dúvida de que as Irmãs que as precederam orientaram vocês e as formaram nesta linha. O Fundador repetia freqüentemente: “A santidade delas deve consistir em fazer sempre o bem em favor de seus semelhantes”.

Poderia ter ocorrido o perigo de, naquilo que foi transmitido, por assim dizer, ‘coisificar’ demais este fazer o bem.

Certamente, os dois aspectos do ser pobres: viver do próprio trabalho e ter amor ao trabalho podem ter induzido a interpretar, de modo deformado, que a própria santidade consistia em trabalhar sempre. Existe algo de verdade, mas é preciso entender bem. Procuremos compreender o que o Fundador tinha em mente.

Uma coisa é manter-se com o próprio trabalho para não ser de peso a ninguém, para facilitar a inserção onde fosse necessário, “onde outras não podem ir ou pensam de não poder”, mas outra coisa é as Irmãs se habituarem à pobreza para estar próximas aos pobres, para sentir com eles o que é a pobreza, mesmo se, às vezes, devam sentir-se humilhadas por não conseguirem estar no mesmo nível dos pobres. Morrer de fome com eles não ajudaria a fazer o bem. Portanto, uma coisa é ter compreendido o estado daqueles a quem se vai ajudar, por experiência própria, pessoal e outra coisa é ter somente lido em algum lugar ou visto fotografias.

O Fundador queria pessoas sacrificadas, sim, mas capazes de fazer disso oferta a Deus e que, através da obediência, podiam fazer-se tudo para todos, no exemplo do Divino Mestre.

Dissemos mártires de caridade. Esta expressão de Gianelli é muito forte. Podemos considerá-la no sentido de mártires e no sentido de testemunhas. Este sacrifício de si mesmas, esquecer-se da própria comodidade e até de si mesmas para fazer-se tudo para todos, fazem parte do espírito apostólico típico de São Paulo, através da expressão “fazer-se tudo para todos”, que Gianelli insere em seu discurso, citando I Cor 9, 22.

O conjunto dos Quinze Artigos (coloquei estas idéias na conclusão do trabalho que a equipe fez) nos faz ver que o Fundador supõe, em suas Irmãs, uma vida cristã, animada por todas as virtudes cristãs; uma vida religiosa constituída sobre os votos religiosos: pobreza, castidade, obediência, vida comunitária; mas a estas coisas quer acrescentar uma forma orgânica de vida espiritual, constituída pelos Quinze Artigos que começam de Deus e chegam novamente a Deus. Partem da confiança em Deus e terminam com o desejo de perfeição, que é precisamente a imitação de Deus.

Gianelli não quis substituir um tratado de vida espiritual, mas nos Quinze Artigos coloca elementos sobre os quais as Filhas de Maria devem exercitar-se e empenhar-se, sabendo que fazem parte da graça de sua vocação e que, portanto, não são elementos separados, justapostos, um ao lado do outro, mas são elementos que chamam uns aos outros. No pensamento do Fundador, a verdadeira confiança em Deus, da qual devem estar animadas as Filhas de Maria, deve sustentar a pobreza constante, o desprendimento de tudo, a obediência cega, o amor ao retiro, o amor ao trabalho, o amor ao silêncio, a oração contínua, o desejo de perfeição; mas, ao mesmo tempo, o desejo de perfeição ou partindo de qualquer outro ponto, exige as outras virtudes. Todas se ajudam, se sustentam entre si. Os Quinze Artigos constituem, portanto, uma forma de organismo espiritual. Um organismo espiritual que está à disposição de uma vida apostólica que supera todo o organismo mesmo. Para o Fundador, desde o momento que existe a opção de ir, de viver a Caridade Evangélica, não haveria sentido deter-se somente sobre a oração e dar-se à vida de oração até alcançar a contemplação. Ao contrário, aqui ele coloca estas coisas um pouco à parte. São dons de Deus, mas normalmente têm necessidade de tempos longos, de um terreno de experiência, teriam a necessidade de uma clausura que as Irmãs não podem se permitir; elas devem ir pelas estradas, no meio das pessoas, trabalhar; terão amor ao retiro, amor ao silêncio, mas não terão somente silêncio, retiro, e trabalho. É amor. É alguma coisa que permanece dentro do ânimo e que, quando se apresenta a ocasião se pode vivenciar porque amo isso(o silêncio, o retiro, etc.), mas não é o meu primeiro objetivo.

O primeiro objetivo é a CARIDADE EVANGÉLICA. É a Caridade Evangélica vivida em condições limites que, então eram as condições limites: “Ir onde outras não podiam ir, onde não se podia ter o socorro de outras Irmãs”.

“Ir aonde outras não iam”, comportava já a missionariedade e a apostolicidade. O ‘fazer o bem’ – se refletimos um pouco – é uma nota quase necessária no tempo do Fundador. Naquele tempo não se podia pensar que as Irmãs pudessem pregar ou ensinar. A evangelização era entendida como trabalho do missionário que ia anunciar o Evangelho; as Irmãs, também aquelas de caridade, faziam um trabalho, por assim dizer, de apoio, não propriamente de evangelização; por isso, não podemos encontrar, no tempo de Gianelli, notas que falem de evangelização. Agora a Igreja fala do apostolado dos leigos e mais ainda do apostolado das pessoas consagradas. Mas no século passado, o apostolado pertencia somente aos Bispos, sucessores dos Apóstolos, ajudados pelos presbíteros. Depois, aos poucos, a noção de apostolado foi se ampliando, assim como os religiosos canalizaram para si a procura da santidade. O Concílio Vaticano II esclareceu ainda mais que todos somos chamados à santidade, todos somos chamados ao apostolado, cada um na própria dimensão.

Quando o Fundador diz “fazendo o bem”, e “fazer o bem”, provavelmente se inspira em uma reflexão sobre Cristo. Cristo veio para pregar o Evangelho, e passou fazendo o bem. É uma expressão dos Atos dos Apóstolos. Portanto, se às Irmãs não se pode confiar a tarefa de pregar o Evangelho, elas podem, como Jesus, continuar a fazer o bem; podem santificar-se neste fazer o bem. Justamente porque Gianelli tem a convicção de que se trata de uma aventura nova, ele quer que a Irmã seja toda confiante em Deus, simples e prudente ao mesmo tempo, numa pobreza que a torne extremamente livre, numa comunidade perfeita que valorize as energias, numa obediência na qual está pronta a fazer tudo o que Deus quer. Mas o Fundador, convencido também da fragilidade humana, quer que a Filha de Maria se exercite no desprendimento, na dependência, na modéstia, para defender-se dos perigos exteriores e que conserve e nutra, em seu ânimo, a procura de um trabalho que é sinal de pobreza, forma de serviço; que procure um retiro no silêncio; que conserve o espaço para Deus na própria vida de doação, vida, porém, que é feita de caridade, de oração, de procura em imitar Cristo. Uma forma de espiritualidade que vai ao essencial; que não procura práticas devotas; que não as multiplica; que procura a santificação fazendo o bem ao próximo.

É exatamente nesta linha da pobreza, sobre a qual tanto insiste o Fundador, que vocês devem refletir para entender a própria missão.

Por que tanta pobreza e porque considerar esta pobreza como garantia de continuidade? “Cessarão de ser as Filhas de Maria quando deixarem de ser pobres”. Isso ele diz muitas vezes.
Será que Gianelli não se dava conta que certas formas de pobreza iniciais não poderiam ser atuadas e continuadas? Provavelmente sim. Porém, se dava conta também que, para estabelecer uma tradição, é preciso haver alguma coisa exemplar que permanece e deixa seu sinal. Além de sua palavra, convidando a procurar, na pobreza, muito mais daquilo que se encontra na exterioridade, isto é, na exterioridade da forma de vida que ele instituiu inicialmente, o Fundador quer fazer entender isto: vejam quanto o Cristo amou e quis a pobreza, tanto que iniciou as suas bem-aventuranças com aquela da pobreza.

Na Igreja, a pobreza sempre foi procurada. Em primeiro lugar o Fundador queria que as Irmãs chegassem ao desprendimento. Com certeza, ele sabia o princípio de São Paulo: “O Apóstolo tem direito a viver do Evangelho”; ou aquele de Cristo: “O operário merece seu salário” (Lc 10, 7; I Tm 5, 18). Mas São Paulo quis dar o exemplo de desprendimento absoluto: viveu fabricando tendas para ganhar a vida e assim não depender das comunidades cristãs pobres. É nesta linha que o Fundador insiste para viver do próprio trabalho; ele não desdenha um pagamento módico e procura estabelecer pequenas iniciativas de tipo apostólico (são duas as Irmãs que vão ao Hospital de Chiávari, mas ele manda três, sendo que a terceira recebe somente em parte) de modo que isto possa servir. O Fundador não desdenhava isto; porém ele quer uma pobreza laboriosa. Este desprendimento é, certamente, um dos aspectos que, na Igreja, foi sempre visto como uma forma de necessidade para o apostolado. Ora, no nosso tempo, no qual a vida é muito alicerçada sobre o trabalho, não se veria com bons olhos quem não trabalha com as próprias mãos ou com outro gênero de trabalho, também intelectual e que, como tal, deve ser retribuído.

O Fundador quer que suas Irmãs se exercitem na Caridade Evangélica, e o façam, podemos dizer, com as mãos livres, colocando em ato aquela frase que Paulo lembra do Senhor: “existe mais alegria em dar do que em receber”. Por isso, depois de ter falado sobre a pobreza muito apertada, disse: “quando as Superioras conseguissem ter alguma coisa a mais, não esqueçam que tem a esmola a se fazer”. Mas é de se considerar que, provavelmente, Gianelli tinha compreendido bem que a Caridade Evangélica precisa de um despojamento muito mais profundo. A caridade que nós exercemos em relação aos outros (ele fala de caridade paciente nos 15 Artigos, aplicada à própria tarefa), esta caridade, eu dizia, é algo que nós recebemos e, conseqüentemente, exercitamos um dom que não é nosso. É a mesma coisa da verdade. A verdade que se difunde com a evangelização não é alguma coisa própria. Se, a caridade que nós devemos colocar em prática e que deve nos animar, é aquela que o Espírito Santo infundiu em nossos corações e provém de Cristo, porque o Espírito recebe de Cristo e Cristo a partilha com o Pai na natureza divina, ser dedicados à Caridade Evangélica significa ter desprendimento de tudo, incluindo também o conjunto de qualidades próprias.

No pensamento de Gianelli, a Caridade Evangélica que uma Filha de Maria deve exercitar é a caridade de Deus; não é um tipo de caridade humana; não é benevolência ou serviço social, coisas que absolutamente não são de se desprezar; serão estas as formas das quais se reveste a nossa caridade. A caridade é aproximar os outros ao amor de Deus, fazer passar, através da própria vida, o amor de Deus. Por isso o esquecimento de si; por isso o desprendimento de si; por isso a profunda humildade.

O que se deve levar aos outros, a saber, o apostolado de vocês, é a Caridade Evangélica. Quando se pensa que se deve tornar Cristo presente, que se deve colocar em ato a caridade que é de Deus, podem desaparecer também todos os problemas de capacidade humana em fazer determinado trabalho ou aspirações muito pessoais.

Diante da caridade de Deus, a atitude exata é a do anulamento de si. Deveríamos entrar no espírito de João Batista que – ao indicar a verdadeira luz, Cristo, e nós deveríamos fazer o mesmo a respeito da caridade de Cristo - disse: “É necessário que eu diminua e Ele cresça”, que a sua caridade cresça em mim.

Por isso, todo este entrelaçamento de desprendimento, de dependência, de humildade profunda. Isto vale para todo apóstolo, para todo pregador da Palavra de Deus, porque quem leva a Palavra de Deus deve lembrar-se que leva a Palavra de Deus e não a própria. Por isso, também da caridade, em todas as suas formas, devemos recordar o que Cristo dizia: quem vos ouve a mim ouve e quem vos despreza a mim despreza. Também no exercício da caridade ele nos diria: quem procura vocês, procura a mim e quem se aproxima de vocês quer se aproximar de mim.

É claro que uma pessoa com este gênero de vida terá consciência e sentirá necessidade de retiro, solidão e silêncio interior não ordinários. Tomará consciência de uma espécie de fratura que existe em nós; não devemos ser impedimento à caridade de Deus. Perceberemos nossa miséria. Dever-se-ia chegar a desejar o despojamento de si. O que conta é Cristo.

São Paulo, ouvindo alguém dizer: eu sou de Pedro ou eu de Apolo, intervém energicamente dizendo: mas o que importa? O que vale? O importante é pregar Cristo. Isto significa que Paulo tinha dentro de si um profundo sentido de pertença a Cristo e a consciência de ser seu servidor. Sentia-se indigno da missão à qual fora chamado e se dava conta de que a verdadeira obra de Deus é misteriosa.

Quando se vive somente para transmitir fielmente uma mensagem, ou no caso, a caridade, a ação de Deus, então percebemos que isso se faz somente passando pela cruz. Com certeza, na pregação, pode ser mais fácil ou mais difícil falar da cruz, pois no exercício da caridade, freqüentemente, vamos ao encontro de pessoas que já estão sobre a cruz de sua vida e não são capazes de aceitá-la. A estas pessoas devemos ensinar a desprender-se das coisas que passam e, muitas vezes, é somente com o nosso exemplo que se pode ajudá-las a aceitar uma verdade. Não é suficiente ajudar um doente a ficar curado, é preciso, através de nossa proximidade, levar-lhe o testemunho de que o dom da saúde não é outra coisa do que uma nova ocasião para poder viver melhor o desprendimento das coisas que passam, procurando o que é verdadeiramente importante em nossa vida: Deus e seu Reino.

Quando alguém deseja fazer apostolado de verdade, encontra dificuldades que a pobreza pode tornar mais fáceis. Quando o apóstolo é verdadeira e voluntariamente despojado de tudo, apesar das fraquezas pessoais ou do dever corrigir os outros, pois esta é também uma forma de caridade, poderá fazê-lo melhor se o coração estiver desprendido. Existe uma pobreza que é implícita em qualquer serviço que se faz aos outros. Não somos chamados a dominar com a nossa caridade e nem com nossas formas de apostolado. Isto seria fazer de nossa caridade um serviço de poder. Devemos ser servidores. São Paulo é consciente do que comporta o seu apostolado. É um administrador, um dispensador dos mistérios de Deus. Administrar a caridade de Deus e dispensá-la aos outros não é menos do que o que o Apóstolo diz da Palavra de Deus: “Ai de mim se não evangelizo!”. Assim, também na caridade evangélica, se poderia dizer: “Ai de mim se não faço o bem !”.

Com isto se quer dizer que a iniciativa não é nossa, somos obrigados a agir movidos pelo Espírito que nos suscita e é por isso que o nosso serviço, a nossa caridade, o nosso apostolado não é mais obra nossa. É correto o pensamento: “Não devo tirar proveito de nada”. Por isso, São Paulo disse: “Do mundo eu não espero nada, não me pertenço mais, pertenço a Deus, pertenço a algum Outro”. Se conseguirmos conceber este sacrifício de nós mesmos como uma pertença total a Deus, haveria lugar para uma espécie de condenação: “Ai de mim se qualquer interesse mundano diminuísse a liberdade da caridade do Espírito Santo que me chamou para que eu esteja a seu serviço”.

Na carta aos Efésios, São Paulo disse de si: “Eu sou embaixador da Palavra de Deus”. Mesmo desejando livrar-se das correntes, para poder fazer mais, dá-se conta de que, mesmo estando na prisão, pode servir à Palavra.

Como o Apóstolo vive nos seus fiéis e eles são a sua obsessão, assim os pobres deveriam ser – para uma pessoa que é chamada a uma vida de caridade evangélica, onde outras Irmãs não podem ir – a própria obsessão.

A Filha de Maria deveria dizer: o meu tempo é vocês; não tenho nada reservado para mim mesma e, se alguma vez, me distancio e volto ao silêncio e me entrego à oração é para poder servir melhor a vocês, com totalidade. É a minha fraqueza que exige de mim ter que tomar repouso, tomar tempo para mim, me entregar à oração mais profunda para recuperar as minhas energias. Chegar a sentir medo de roubar aos outros quando uma dispõe de si mesma por egoísmo, para si mesma.

Ser servidor da caridade de Cristo é algo que toma toda a vida. Ser servidores da caridade de Cristo junto aos outros, porque, no fundo, o objetivo do apostolado é sempre fazer crescer o Cristo. Claro que isso não é fácil. Não é fácil ter isto sempre presente. Deve-se conseguir ser servos de todos, naquilo que cada um tem de particular, como se aquela fosse a única pessoa no mundo que está sendo servida, inspirando-se em Deus, o qual, veio para todos e deu a vida por todos. É neste sentido que o Apóstolo se faz “tudo para todos”, como dizia Gianelli das primeiras co-irmãs de vocês. Fazer-se tudo para todos! Isso significa que não sobra nada delas para elas mesmas; significa que uma Filha de Maria não se pertence mais e encontra o sentido da pobreza.

Uma coisa é o sentido da pobreza como meio para servir aos outros e, em certos momentos, poderá ser muito exigente; outra coisa é a pobreza mais interior porque se entende que, sem Deus, não se pode fazer nada aos outros. Então, intervém a confiança e o abandono em Deus, a oração constante, a adoração. Lembrem-se da idéia do Fundador, aos inícios do Instituto a qual jamais abandonou: a de fazer a adoração perpétua em casa.

Com certeza, a pobreza interior é mais importante do que a pobreza exterior; mas não se consegue ter pobreza interior se não se entrou a fundo na pobreza exterior, aceita como meio, mas como um meio que deve nos libertar para estar a serviço de todos, para ser verdadeiramente tudo para todos. E, se este ser tudo para todos comportar também sofrer alguma coisa pelos outros, estamos em boa companhia, pois São Paulo dizia: “Estou contente por aquilo que sofro por vocês; completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo, em prol do Corpo de Cristo que é a Igreja”.

São Paulo repete muitas vezes que o Apóstolo sofre a tribulação do coração, a angústia, as perseguições exteriores, o abatimento, a participação na morte de Cristo até ao ponto de vivê-la no próprio corpo. Daí a necessidade do Fundador de colocar, como primeiro Artigo, a Confiança em Deus, pois sabia e previa que o apostolado, o fazer-se tudo para todos na caridade evangélica, tinha necessidade de uma morte a si próprias e de uma doação de si que poderiam levar ao abatimento. Mas, para combater o abatimento, existe a confiança em Deus.

São Paulo quer indicar também como esta pobreza interior se estende à humildade. Gianelli, depois da grande confiança em Deus, focaliza a humildade e a apresenta como condição de fundo para viver esta confiança. Basta lembrar a passagem da carta aos Coríntios, onde São Paulo, falando de si, diz: “Nós, como apóstolos somos os últimos entre os homens, somos condenados à morte, dados em espetáculo ao mundo, aos anjos, aos homens. Nós, estultos por Cristo e vós prudentes, nós fracos e vós fortes, vós honrados e nós desprezados; também neste momento passamos fome, sede e estamos nus e somos esbofeteados e não temos onde repousar; cansamos-nos trabalhando com nossas mãos; amaldiçoados, bendizemos; perseguidos, suportamos; caluniados, suplicamos; somos considerados o lixo do mundo, a escória de todos”.

Estas palavras valem para qualquer apóstolo. O Fundador se dava conta de que as suas Irmãs teriam necessidade de voltar a estes princípios. Nós conhecemos a sede e a fome; cansamos-nos trabalhando com nossas mãos, mas não por isso obtemos tudo. Para que o nosso trabalho, o nosso apostolado tenha efeito é preciso algo mais profundo: coloquemos toda a nossa confiança em Deus; quem deve agir é a caridade de Deus e Ele não a deixará faltar. Esta caridade de Deus, na medida em que somos dóceis à sua ação, à sua graça, operará através de nossas pequenas coisas; através de nosso modo exterior; através de certa forma de apostolado que hoje vai bem e amanhã não irá mais e precisará mudar tudo, porque não temos segurança de nossas formas humanas.

Certamente, o conceito que o Apóstolo Paulo fez do apostolado, não comporta que hoje, um apóstolo, possa desempenhar o seu trabalho e ser, no mundo, um personagem que todos estimem. Talvez, isso possa acontecer em algum caso. Mas é a pobreza de espírito a condição mais essencial de um sucesso verdadeiramente apostólico, aquela que santifica o apóstolo e torna fecunda a sua ação. Santificar-se fazendo o bem aos outros, exercitando a caridade paciente. Para que a caridade de Deus passe através das obras de vocês só será possível se for incluído o desprendimento, também diante dos aparentes sucessos e a doçura e humildade interior nos insucessos. Lendo os Artigos, especialmente aquele sobre a humildade, mas também o da confiança em Deus, vocês verão como o Fundador insiste sobre este fato: não precisa abater-se, mas é preciso ter coragem e fazer o bem. O resultado? Não é da nossa conta. Como? Não é coisa nossa? Sejamos desprendidos. O que importa é Cristo, não o sucesso. O meu sucesso não importa, é Ele que deve ter sucesso. E, assim, existe, exatamente, o desejo ou o gosto pelos cargos obscuros, num trabalho que comporta uma rede de trabalhos, na qual, alguém aparece mais, porque aparece exteriormente e os outros não aparecem. Perdendo-se o sentido destas coisas, parece-me que se perde um pouco daquilo que queria o Fundador de vocês.

Mas, repensando nas palavras de São Paulo que temos refletido, temos um grande salto a fazer. Para que a alma tenha abnegação, impulso e ardor apostólico é preciso, evidentemente, um amor à pobreza que se consegue na cruz de Cristo. Um amor que se experimenta no mais íntimo da alma, de onde, precisamente, a alma deve partir para servir aos outros. Talvez não cheguemos nunca ao despojamento efetivo dos bens exteriores.

Se devermos usar determinados bens, devemos fazer isso sabendo que, ali, existe um perigo, e devemos ser atentos a este perigo, mesmo se as circunstâncias mudaram ou estão mudando as formas de pobreza que o Fundador fez experimentar às primeiras Irmãs, ao ponto de dizer (e o diz abertamente) “quem não resiste a um gênero de vida como esse não é feita para nós”.

Os grandes fundadores sempre sentiram este chamado à pobreza. Em São Francisco, que todos conhecemos, sabemos qual era o seu desejo de pobreza. São Domingos deixou um testamento belíssimo aos seus Filhos: “tenham a caridade, conservai a humildade, possuam a pobreza voluntária”. Santo Inácio, nas Constituições, diz: “amai a pobreza como mãe”. Gianelli se inspirou neste conceito.

Certamente, o Fundador, hoje, não diria “façam obras melhores, procurem responder a todas as necessidades de apostolado atual”, mas, por quanto diz respeito a vocês, pessoalmente, ainda hoje diria: “insistam sobre a pobreza e sobre a humildade. Uma pobreza e uma humildade que se tornaram uma loucura no serviço aos outros, visto aos pés da cruz”.

Nisto me parece que vocês tem alguma indicação também no que diz respeito à formação permanente.

Em relação ao que a pobreza significa hoje e ao que a Igreja pede à Vida Consagrada, vocês encontrarão facilmente quando o Papa escreve sobre a pobreza evangélica, serviço aos pobres e os desafios da pobreza hoje. Se vocês retomarem o que ele diz, no número 37 de Vita Consecrata, sobre a pobreza criativa, encontrarão ali um chamamento, com o qual podemos concluir bem o que temos dito: “Os Institutos são convidados a re-propor corajosamente o espírito de iniciativa, a criatividade e a santidade dos fundadores e fundadoras, como resposta aos sinais dos tempos visíveis no mundo de hoje. Este convite é, primeiramente, um apelo à perseverança no caminho da santidade, através das dificuldades materiais e espirituais que marcam as vicissitudes diárias”.

Entre as dificuldades materiais, se poderia colocar também o fato de que, hoje, o modo de viver a pobreza inicial não seria mais possível. É uma dificuldade, mas o espírito não deve ser perdido, o espírito torna vocês livres. Deve permanecer, entretanto, sempre e em qualquer tempo, a convicção de que, na procura da conformação sempre mais plena com o Senhor está a garantia da renovação que pretende permanecer fiel à inspiração original.

Por isso, a inspiração originária deve existir e deve ser clara e se deve permanecer fiéis a ela. Mudam as formas, mas não muda o espírito.

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